Design livre é o design da criança

Uma das primeiras coisas que toda criança aprende é a projetar, ou seja, a transformar a imaginação em realidade. Na verdade, o projetar é uma das maneiras como a criança aprende sobre suas próprias capacidades, as capacidades dos objetos ao redor, e os limites impostos pela sociedade sobre ambos.

A criança tem uma ideia e projeta essa ideia num objeto. O objeto é modificado, seja no seu significado, uso, ou funcionamento. As modificações mais radicais acontecem quando objetos são combinados de forma inusitada. Novas ideias surgem à partir dessas modificações e o projeto avança.

O projeto, vale lembrar, acontece sempre dentro de uma estória. A criança projeta para atuar na estória, contracenando com outras crianças e adultos. A narrativa, assim como o projeto, combina elementos reais e imaginários e permite a criança considerar outras possibilidades de atuação. A narrativa dá sentido ao projeto e o projeto, por sua vez, dá continuidade à narrativa. Os vídeos da etnografia Território do Brincar mostra isso claramente.

Os objetos podem também ser o ponto de partida de uma narrativa. Isso é facilmente observável se a criança for levada para um ambiente estranho, com objetos que ela não conhece, onde ela deve esperar por algum tempo um adulto fazer algo. A criança dá sentido à situação sem sentido.

A criança explora propiciações que jamais adultos considerariam. Aperta aqui, puxa dali, entorta, tenta de outro jeito. A criatividade no uso pode ir muito além da criatividade no projeto. Veja como a cadeira abaixo se transforma, pouco a pouco, num escorrega.

Crianças que são estimuladas apenas a brincar com brinquedos industrializados da maneira como eles foram projetados para ser brincados, não desenvolvem a habilidade de projetar no mesmo grau.

Brinquedos com formas realistas demais, materiais inflexíveis, marcas, manuais de instrução são as várias formas como a indústria de brinquedos evita que o projeto da criança aconteça espontaneamente. O brinquedo perde a graça rapidamente e o consumismo impera.

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Por outro lado, brinquedos feitos com materiais flexíveis, modificáveis, de formas genéricas, customizáveis, modulares, tem maior durabilidade, em termos de diversão. O esforço inicial de brincar é maior, pois o sentido não vem embutido.

Algumas pessoas perdem esse despudor de projetar livremente quando crescem, outras mantém. As escolas que trabalham com pedagogia de projeto ajudam a manter e a desenvolver as habilidades de projetar, porém, em última análise, esta é uma questão social. Se a escola é um oásis no meio de uma sociedade que inibe a liberdade de projetar, não há garantia alguma de que a criança desenvolverá estas habilidades. Pode acontecer o contrário, da criança se sentir envergonhada porque em casa brinca somente com brinquedos de madeira, enquanto que o amigo brinca com bonecos de personagens de televisão famosos.

O professor Antonio Fontoura defende que design seja parte do currículo escolar básico. Eu acho uma boa ideia, porém, sem uma cultura de projeto, não fará sentido. Em primeiro lugar, é preciso desfazer essa noção de que só designer profissional faz design. Como a gente diz no Design Livre: “libertar o design do designer”. Sem isso, como justificar que toda criança deve aprender design?

Em segundo, é preciso tratar as crianças como especialistas, ao invés de alunos. Trabalhar à partir do que elas já sabem fazer e expandir. Os materiais devem ser os disponíveis na região. A pluralidade de materiais, métodos, ferramentas, sentidos deve ser o principal valor a ser cultivado.

Em terceiro, a mudança deve ir além da escola. Programas de televisão, revistas, websites, lojas de brinquedos teriam que dar mais espaço ao projeto infantil. Haveriam concursos, exposições, e prêmios para o design das crianças.

O design já é livre enquanto criança. Se mantermos ele livre o resto da vida, então teremos um outro tipo de sociedade, menos consumista creio eu.

Author: fred

Frederick van Amstel é um dos fundadores do Instituto Faber-Ludens, editor do blog Usabilidoido e coordenador do Living Lab Corais. Bacharel em Comunicação (UFPR) e Mestre em Tecnologia (UTFPR), Frederick vive na Holanda, onde realiza pesquisa de doutorando sobre Design Participativo (Universidade Twente). Frederick foi jurado dos concursos IF Design Awards e Peixe Grande. Prestou consultoria em Design de Interação para empresas como Electrolux, InfoGlobo, Magazine Luiza, Tramontina e Duty Free Dufry.

21 thoughts on “Design livre é o design da criança”

  1. Muito interessante. Eu sempre acho que as crianças tem um modelo mental mais livre e sem nenhum paradigma mais que o natural para o design. Mas tem uma dicotomia entre o design estruturado e a falta de ele. Por muitos anos a gente pensavam que para poder criar disenho era necessaria a criação da estrutura do proceso do design, e tambem funciona, mas as veces a gente precisa também da disorganização para o design. Muitas universidades estão estudando como disenhar a disorganização como um elemento intencional do design.

    Por exemplo, eu vi este vídeo de uma cadeira do Stanford: https://www.youtube.com/watch?v=I7o19ta4sMk

    1. Acho interessante a distinção que o Gonzatto faz entre parecer projetado e parecer não-projetado. http://www.gonzatto.com/linguagem-design-projetado/

      Muito do que a gente considera não projetado é, na verdade, uma variante cultural em demérito. A gente acha que não é projetado porque nossos padrões de projeto são diferentes. Ao invés de reconhecer e aprender com a diferença, a gente nega e exclui. Essa reação é comum a grupos que desejam manter sua hegemonia cultural, status social, proteções trabalhistas e etc.

      É muito mais fácil negar os exemplos que apresentei acima tachando eles como não sendo design do que discutir seriamente o que podemos fazer para preservar a liberdade de projeto.

      A questão do espaço que o Emilio levanta enriquece o debate. Um observador novato à ideologia do design thinking pode à primeira vista achar a d.school muito parecida com um jardim de infância, porém, ao observar cuidadosamente perceberá que a desordem visual é intencional e parte de um projeto cuidadoso, o que fica evidente na fala da apresentadora do vídeo.

      1. Fred,

        Eu não estou negando nada. Minha visão de projeto é provavelmente mais abrangente (ou frouxa) que a sua, pois inclui até primatas não-humanos e alguns mamíferos. Eu sequer acredito num artefato que pode ter sido “não-projetado” a ponto de achar que conceitos como “design vernacular” são embromação ou exemplos daquele “demérito cultural” que você sugeriu.

        Minha implicância é com a introdução de questões puramente políticas num universo que ainda é de exploração física, manipulação direta e mediação simbólica de outra ordem que não a do “projeto” dos designers. Este até precisa ser liberto, mas o da criança sequer nunca foi refém de nada.

  2. Fred,

    Tenho uma visão bem diferente da sua. A literatura (extensa) sobre o desenvolvimento da criança não ajuda muito você a sustentar que uma das primeiras coisas que a criança aprende é projetar. Pelo menos não esse projeto que você quer libertar dos designers… É muito mais ação-cognição que plano, muito mais exploração física que modelagem ou abdução.

    O tipo de capacidade de projeto que a criança tem não se aprende, no sentido escolar do termo. É um fenômeno inevitável da experiência humana. Deus me livre brinquedos, espaços e coisas específicas para o “projetar da criança”. Vai dar no mesmo que software educativo e informática educacional: em lugar nenhum.

    Criança tem que brincar, cair, comer areia e construir suas coisinhas naturalmente. É o recado de todos, de Montessori a Sugata Mitra, passando por Piaget, Papert, Bruner e até um Ken Robinson.

    Se saber projetar fosse garantia de consciência de consumo os designers e arquitetos não seriam os hedonistas-fanboys-da-Apple que são.

    Apenas meus 2 cents.

  3. Concordo plenamente com o Hugo. Acho importante levantar também alguns trechos do texto que parecem “mantras” mas que são simplesmente chutes.. exemplos:

    “Crianças que são estimuladas apenas a brincar com brinquedos industrializados da maneira como eles foram projetados para ser brincados, não desenvolvem a habilidade de projetar no mesmo grau.” Baseado em que se dá uma afirmação tão ampla? Nem Piaget, nem Vygotsky, Bruner ou qualquer outro estudioso do desenvolvimento e/ou da aprendizagem jamais chegou perto de afirmar algo tão específico. E tenho absoluta certeza de que ninguém nunca estudou (até porque não faz sentido) a relação de causalidade entre brincar com coisas industrializadas do jeito “previsto” e desenvolver uma suposta habilidade de projetar.

    “O brinquedo perde a graça rapidamente e o consumismo impera.” Novamente, é uma afirmação parecida com um mantra e sem nenhum fundamento, sem falar no tom pseudo-socialista-anti-capitalista, estranho sobre conteúdo de uma área como o design, que tem os pés fincados no capitalismo.

    Não querendo entrar nesse mérito, mas é importante separar inclinações políticas com concepções sobre o desenvolvimento humano. Obviamente que o contexto sócio-histórico contribui para a construção do indivíduo (criança ou não) mas relacionar aspectos do desenvolvimento humano, que independem de política (mas sofrem influência de, bem como sofre influência de tudo ao redor) me parece, na melhor das hipóteses, ingenuidade.

    1. Eu acho que as inclinações políticas tem muito que ver com o modelo de criação-produção, quando de fato foram os modelos economicos os que criaram os processos de produção no presente. É o modelo de produção fica sob o modelo economico.

      1. Acho bacana que a gente tenha pontos de vista diferenciados sobre a questão. Minha perspectiva é pragmática: pra mim não interessa muito o que é ou não é design, mas o que posso fazer com design.

        Em primeira instância, vejo a oportunidade de aprender design a partir de brincadeiras de criança. Na minha palestra no Interaction 12 eu apresento elas como design de interação vernacular. Testei essa abordagem com os alunos do Faber-Ludens e tive resultados bastantes satisfatórios.
        http://fredvanamstel.com/blog/interaction-design-as-a-cultural-project

        Em segunda instância, vejo a oportunidade de estimular o desenvolvimento de habilidades projetuais das crianças através de atividades escolares, lazer, e empreendedorismo. Ainda não tive a oportunidade de me aprofundar nessa possibilidade, mas quando voltar ao Brasil certamente irei desenvolver projetos com esse intuito.

        Em terceira instância, vejo a oportunidade de transformação das relações de produção e consumo na sociedade pelo cultivo de uma ideologia de liberdade de projeto, esboçada no artigo que o Gonzatto escreveu comigo http://www.gonzatto.com/the-ideology-of-the-future/ Vale ressaltar que essa transformação já está acontecendo em vários setores da sociedade, porém, existe uma cooptação que precisa ser combatida.

        O potencial emancipador dos novos meios de produção que o pessoal do design livre promove (desenvolvimento distribuído, impressão 3D, etc) podem ser totalmente neutralizados se forem integrados às relações de produção existentes. Essa transformação não vai acontecer pela mera substituição de tecnologias e processos. É preciso uma mudança cultural que abranja valores, visões de mundo, rituais e por aí vai, daí meu interesse pelas crianças.

        As práticas infantis são ao mesmo tempo inspiração e esperança de que é possível essa transformação. Não se trata de catequizá-las sobre a liberdade de projeto, pois o ponto do meu texto é justamente que elas já possuem essa liberdade. Trata-se de manter essa liberdade de alguma forma. É um pensamento ingênuo sim, mas para mim bastante motivador.

        1. Fred,

          Posso parecer um pouco chato com meu comentário, mas até que ponto podemos ser cientificamente ingênuos? Agora, não sei se podemos cientificamente irresponsáveis e ignorar quase um século de psicologia do desenvolvimento.

          O design enquanto área de pesquisa sofre mais do que deveria com esse distanciamento do conhecimento produzido por outras ciências, muitas vezes por preguiça ou falta de conhecimento.

          Tem gente que se convence com belas fotos e vídeos. Eu quero dados experimentais, quero grupos de controle em diferentes culturas. Aí sim começaremos a falar em “as crianças” e não apenas “naquelas poucas crianças que participaram da dinâmica X do pesquisador Y”.

          Abs

          1. Como disse, eu não tenho muita experiência na exploração dessa oportunidade e este não é um artigo acadêmico, mas as fotos e vídeos que postei são evidências anedóticas convincentes para acreditar na hipótese, especialmente porque corroboram minha própria experiência como criança e minhas observações como adulto.

  4. Tal vez aqui precisamos de organizar as ideias um poco para ver o sentido dos comentarios. Não acho que o que Fred diz carêce do senso cientifico, é só que devemos trocar um pouco a perspectiva para que seja menos controversial.

    Primeiro, o que ele fala é uma característica óbvia do desenvolvimiento das crianças e é utilizado como suporte para a inteligencia artificial: o aprendizagem nas primeras etapas da vida começa com processos de tentativa e erro, sobre os quais o conhecimento é adicionado. O design das crianças utilizam conceitos basicos de movimiento (saltar, correr, andar, girar) e de articulação de partes (juntar, colar, meter, etc.) no jogo. Os brinquedos industriais tem a caracteristica que são projetados para gerar historias já feitas, e não como blocs base para a criação de outros brinquedos. Os Lego são industriais e não por isso deixam de ser perfeitos para desenvolver habilidades para design. O caso contrário são as bonecas. Tem brinquedos que sirvem para criar no mondo fisico e outros feitos para projetar histórias. Porém, os brinquedos industriais estão baseados em historias comerciais, os personagems já tem nombre (se você tivera uma figura de ação de Goku ou um Pokémon, mudaria o nome de ele quando você joga?)

    No processo de jogar com elementos básicos, você pode sugerir que o design emula os processos básicos das crianças no senso de que a medida que o seu análise utiliza elementos mais basicos e crus no processo, então é mais facil trocar entre diversas alternativas em menor tempo. Se vocês quiserem um exemplo, ista o TRIZ (tomara que seja novo para você, Fred). Se não esqueço mal, a metodologia foi desenvolvida por um analista num escritório de patentes em Russia, classificando soluções a problemas por como foram feitas e criando uma matriz para solução de problemas mecanicos/fisicos que foi usada por corporacões grandes em todo o mundo.

    http://en.wikipedia.org/wiki/TRIZ

    1. Emilio e Fred,

      Nem cientificamente nem informalmente na minha atuação profissional como designer eu ignoro a autonomia do sujeito. Não acredito em determinismos estruturais, muito menos com crianças. Uma parte importante do Design Livre (acho) diz respeito justamente à capacidade inventiva das pessoas em encontrarem suas próprias soluções. Se caixa de sapatos pode virar carrinho, por que Goku (oriental, musculoso, vestido de lutador) não pode ser um amigo gay, sueco e motorista da Barbie numa encenação qualquer?

      É justamente pela falta de profundidade nos argumentos sobre o desenvolvimento cognitivo que a discussão fica complicada e com ares de mantra. Em termos piagetianos (para manter o mínimo de ciência na conversa), há sem dúvida uma acomodação da novidade oferecida pelo ambiente (abertura) pela criança aos seus esquemas, mas a acomodação é de um esquema de assimilação (fechamento). São as expectativas e histórias do usuário que transformam coisa em objeto, não o inverso.

      Por outro lado, brinquedos feitos com materiais flexíveis, modificáveis, de formas genéricas, customizáveis, modulares, tem maior durabilidade, em termos de diversão.

      Eu adoro o uso de palavras e expressões como “parece”, “é possível que”, “pode-se sugerir que” para evitar as armadilhas do senso comum. Minha crítica, desde o primeiro post, foi essa. Debater faz o raciocínio caminhar e a comunidade crescer.

      1. Uma coisa é falar do desenvolvimento das capacidades cognitivas dos indivíduos e outra das reglas para o seu utilização, é por isso que você encontra tanta dissonancia. Eu acredito em um número finito de posibilidades de solução de um problema num sistema fechado, mas eu acho que o numero cresce a medida que os sistemas ficam mais complexos (pelo número de iterações necessarias para chegar à solução).

        O “fenômeno inevitável da experiência humana” que você mencionou antes é o mesmo processo de aprendizagem, em baixa escala. A complexidade do sistema não transforma os processos sempre que sejam a mesma classe de elementos interagindo nele. Eu acho que você tem problemas para concordar conosco porque você analiza a criança como um sistema que interage com elementos que não são compatívels com a abstração das ideias que Fred descreve.

        As regras que você utiliza para analizar o indivíduo na psicología podem ser utilizadas até um punto específico, mas não sempre são efectivas para entender por qué o “design vernacular” ou o aprendizagem numa metodología de “regressão cognitiva” são efectivos. Você não tem mencionado o exemplo do TRIZ que eu coloquei lá. São os mesmos principios que hoje são utilizados para um computador: para solucionar um problema é preciso dividir as tarefas em partes pequenas, iterar as muito como seja possível e mudar o maximo possível para cada tentativa.

        Se o determinismo estrutural fuçõa como medio de análisis para a inteligencia artificial mas não para a natural para os mesmos processos cognitivos, é como que você que corre diga que colocar um pé depois de outro não funçõa para caminar. En conclusão, as ciências sociais não são as mais efectivas para analizar o mondo das ideias pelo nivel de bagagem que tem em termo das suposições das que precisa. O design livre deve començar com hipótesis na abstração assim como as ciências sociais começarom y foram construídas sobre a lógica e as ciências formais. Não estou desacreditando o seu ponto de vista, mas eu prefiero partir do simple e depois explicar-lo desde o ponto de vista de um sistema compexo.

        1. Emilio,

          Quando mencionei os sistemas piagetianos, pensei em autopoiese: a novidade é um produto inevitável e desejável da atividade do próprio sistema tentando se manter como é. A abertura existe como perturbação, não como determinismo estrutural. O sistema funciona sob suas próprias regras e não faz nada que não esteja de acordo com o entrelaçamento da sua filogenia e ontogenia. Tem gente que chama de cognição, tem gente que chama de aprendizagem, tem gente que chama de treinamento. Pra mim pouco importa. É tudo a mesma experiência da ação do indivíduo. Pode ser um cachorro, uma bactéria, uma criança ou um robô de busca.

          O problema não é falar ou não de abstração. É definir de qual abstração estamos falando. Cada teoria científica sobre o desenvolvimento humano conceitua a abstração de uma forma e eu não consegui perceber qual o alinhamento da proposta de vocês.

          O modelo de resolução de problemas que afoga a inteligência artificial clássica até a cabeça (dividir e conquistar, análise meios-fim, heurísticas diversas) está lá nos anos 50 da mesma psicologia que você diz que não serve para entender o design vernacular ou aprendizagem do que quer que seja. Estamos no séc XXI e temos outros problemas…

          Sendo bem prático, a leitura que eu tenho do Design Livre se apropria da Psicologia Sócio-Histórica, de Vygotsky a Engeström, e está no extremo oposto de Herbert Simon e o cognitivismo que foi congelado (felizmente) nos anos 1980. Eu estou tentando acompanhar o raciocínio do Design Livre tendo essas questões como plano de fundo. Se por ventura houver uma reviravolta e algum formalismo lógico-matemático substituir a construção sócio-histórica de conceitos no Design Livre, espero que os teóricos da proposta façam uma elaboração detalhada.

          Enquanto você pensa no caminhar como uma sequência planejada que coloca um pé após o outro fazendo conferências entre as metas e o objetivo final para reajustar o modelo dos passos, eu penso em termos de uma simples mola de brinquedo descendo uma escada. Não há plano, não há metas e portanto não há ajustes, não há sequer sistema nervoso central. É um problema de um corpo que conhece agindo e age enquanto conhece, segundo suas próprias questões. Não preciso de algoritmos pra explicar o caminhar.

          Eu conheço pouco de TRIZ porque não me interesso por metodologismos. Tenho alguns colegas que trabalham bastante com isso aqui na Ufes, mas realmente me interessa pouco. Não acho que design se define por métodos ou por processos, mas por uma interdependência entre usuário, objeto e contexto. Cada um deles é produto e produtor do outro num sistema dinâmico e (infelizmente ou felizmente) complexo.

          Se as Ciências Humanas (não apenas as Sociais) não são as mais efetivas para analisar o mundo das ideias, espero que o Design Livre abra mão de tudo que está nas suas bases e abrace a próxima alternativa (que eu sinceramente desconheço).

          Por fim, partir do simples é bom, o que não quer dizer que ver com um olho só diminui a complexidade do que é visto. Gosto de lembrar que quem nasceu caolho não tem a menor ideia do que lhe faz falta.

          PS: Não precisa desacreditar nem acreditar no meu ponto de vista. Só gostaria de ter informações suficientes para entender o seu.

          1. Emilio, acho que você foi um pouco além do que estamos discutindo aqui nesse post. Você trouxe questões importantíssimas para a gente discutir no Design Livre, mas que acho que não cabe numa página só. Tem que ir abrindo outros posts.

            Acho que você fez isso porque quiz dar uma resposta completa pro Hugo. Eu e o Hugo já conversamos há muitos anos e temos esse estilo de debate acirrado, mas no fim das contas, temos interesses similares.

            Estou nesse momento compilando os resultados de experimentos que fiz com estudantes holandeses sobre dialética em processos de design. Uma das ferramentas de solução de problemas que a gente testou é justamente o TRIZ. A gente testou dentro de um experimento de estimulação dupla, um método experimental alternativo desenvolvido por Vygotsky.

            Um dos exemplos desse tipo de experimento usado pelo Vygotsky usa um brinquedo comum às crianças, blocos de madeira, para observar a formação de um conceito que explica as diferentes formas dos objetos. A criança cria um signo à partir da forma de um bloco e utiliza-o para investigar a forma dos demais.

            Aqui tem vídeos que repetem o experimento
            Em Espanhol http://www.youtube.com/watch?v=Kr2OvF7rcCc
            Em Inglês https://vimeo.com/10689139

            O experimento demonstra entre outros que os brinquedos não são tão plásticos em termos de interpretação como o Hugo propõe. Os signos socialmente atribuídos aos objetos (as palavras que o experimentador dá à criança para ajudar na tarefa) mudam as possibilidades de ação do objeto. Como o pesquisador não dá a explicação inteira logo de cara, a criança precisa interpretar os signos atribuídos pelo experimentador e acrescentar os seus próprios.

            O que a gente está confirmando com esse tipo de experimento é que a escolha dos materiais para colaboração (e dos brinquedos para as crianças) afeta a dinâmica de interação (a brincadeira), conforme havia explicado nesse post http://www.usabilidoido.com.br/a_importancia_dos_materiais_na_co-criacao.html Não é o material que afeta diretamente, pois o esquema do Vygotsky não é mecanicista, mas a escolha do mesmo, ou seja, o signo atribuído a ele.

  5. Fred,

    Legal você explicar mais um pouco sobre o que está fazendo. Fica muito difícil entender as propostas sem esse contexto. De qualquer forma, continuo confuso. Veja só:

    (as palavras que o experimentador dá à criança para ajudar na tarefa) mudam as possibilidades de ação do objeto. Como o pesquisador não dá a explicação inteira logo de cara, a criança precisa interpretar os signos atribuídos pelo experimentador e acrescentar os seus próprios.

    Como os brinquedos não seriam tão plásticos? Que parte das possibilidades infinitas desencadeadas pelo discurso do entrevistador não está ligada à plasticidade simbólica do objeto? No caso de objetos que sequer fazem parte da cultura do participante (como nos experimentos do Luria com geometria), a história fica mais interessante e aberta ao novo ainda. Além da forma, cor e nome, a geometria adiciona uma camada de relações matemáticas à formação do conceito. É uma festa.

    O experimento do Vygotsky é realmente muito interessante, embora ele esteja focado em questões mais epistemológicas (construção do conhecimento em si) do que de cognição-ação, que julgo mais próximas do fenômeno do uso. Explico: a criança não está fazendo nada com os blocos. Não há problema construtivo ou de uso algum em jogo, a não ser o problema introduzido pelo pesquisador com questões específicas. É um problema ultra-fatiado, um episódio ínfimo da dinâmica inteira da formação de conceitos na perspectiva do Vygotsky. Há várias outras com análises distintas. Retomando meu exemplo do Goku-motorista-gay-sueco, há pelo menos uma dezena de propriedades do boneco, do contexto e do histórico da criança que estariam envolvidos naquela possibilidade narrativa, muitas totalmente independentes da forma daquele brinquedo ou de como aquela forma contribui para a construção das affordances.

    Eu nem disse que o objeto não contribui em nada (estruturalismo cognitivo puro, estilo gestalt) como também não disse que a criança faz tudo sozinha (geneticismo puro estilo Lamarck). É justamente o embate entre aquilo que eu conheço e aquilo que estou tentando conhecer, usando meu conhecimento como esquema de assimilação, que me fazem questionar a ideia do brinquedo com propriedades X ou Y seriam naturalmente mais divertidos ou qualquer outra coisa por mais/menos tempo.

    Não tenho os mesmos dados que você, Fred (pesquiso cognição com computação, não com brinquedos), mas eu não tiraria as mesmas conclusões considerando o meu referencial teórico.

    Sobre o debate acirrado, acho que é um dos poucos assim no design brasileiro, infelizmente. Aprendo muito quando preciso rever meus conceitos para discutir com vocês. Que continue nessa linha 🙂

    1. Eu gostaría de continuar no debate acirrado também, mas vou preferir de perguntar à vocês por literatura que possa-me iluminar nesta linha de conhecimento no desenvolvimento e aprendizagem dos individuos. Vocês recomendam alguma? (:

      1. Emilio,

        Acho que as referências mencionadas pelo Fred já são um excelente começo: Vygotsky – Formação Social da Mente, Pensamento e Linguagem, Psicologia e Pedagogia devem existir em castelhano. Livros do Luria e Leontiev podem tem ajudar a entrar um pouco mais no método do Vygotsky, mas não faço ideia dos títulos disponíveis no seu país. De qualquer forma, o Desenvolvimento do Psiquismo é uma ótima referência.

        Uma boa introdução ao Piaget é o Seis Estudos em Psicologia, que é um clássico. Especificamente sobre as operações formais, recomendo o Abstração Reflexionante e Formas Elementares da Dialética. São bem complicados de ler, mas depois que se pega o jeito do texto do Piaget são fantásticos.

        Recomendo MUITO ler Maturana e Varela, tanto o De Máquinas e Seres Vivos quanto o Árvore do Conhecimento.

        Tenho um plano B para você, mais próximo da análise do comportamento, que é o livro Aprendizagem, do Catania.

        O plano C é onde estou enfiado até a cabeça agora (cognição corporificada). Recomendo o Mente Corpórea do Varela e os clássicos do JJ Gibson (Ecological Approach to Visual Perception e Senses considered as Perceptual Systems) e da esposa dele (An Ecological Approach to Perceptual Learning and Development).

        Por fim, sou fã incondicional dos Mil Platôs de Deleuze e Guattari. É uma excelente discussão sobre capitalismo, agenciamentos na produção de sentido.

    2. Acho que o post de blog tem essa vantagem em relação a um texto acadêmico. Ele deixa muitas portas em aberta para outros entrarem com seus comentários.

      Os experimentos que a gente está fazendo na UTwente estão justamente tentando levar esse método do Vygotsky para uma tarefa de projeto. Porém, eu não estou fazendo experiências com crianças e não posso afirmar nada cientificamente. O que eu expus no meu post são heurísticas que eu uso para escolher os brinquedos que eu vou dar ao meu filho, por exemplo.

      Eu não acredito que se eu der um boneco do Goku ele vá brincar de qualquer coisa. Ele vai brincar de coisas que ele quer conhecer, explorar, imaginar e, embora sejam muitas as possibilidades, ainda assim estão baseados no universo social em que ele está inserido. Motoristas gays suecos estão fora de cogitação…

      Por outro lado, os tabus, fetiches e marcas atribuídos socialmente ao brinquedo podem ser uma questão de investigação, porém, a liberdade não será a mesma para todos os objetos. Alguns objetos recebem signos justamente com a intenção de restringir a liberdade, como por exemplo a ausência de órgãos sexuais em bonecos. Os signos não são necessariamente refletidos pela criança, mas sim refratados, por isso digo que não existe 100% de plasticidade (fazer qualquer coisa com o brinquedo).

      E acrescento mais, conforme a criança cresce, ela é requisitada a reconhecer mais e mais os tabus, fetiches e marcas atribuídos aos objetos, ou seja, ela vai perdendo essa liberdade de projetar. Quando as possibilidades de significado são reduzidas a 0, então a criança/adolescente acha brinquedos sem graça e vai fazer outra coisa que dê mais liberdade interpretiva. Isso não acontece com todo mundo, entretanto…

  6. Motoristas gays suecos estão fora de cogitação…

    Estão fora de cogitação se estiverem fora do universo social dela criança. Imagine o que crianças indianas como as mostradas no documentário Nascidas em Bordéis teriam como referências para introduzir nas brincadeiras da Barbie. Certamente não seria o modelo de casal estereotipado que gerou a franquia de brinquedos.

    http://www.youtube.com/playlist?list=PLDEA70E05FE7BD624

    Não acredito em significado zero, Fred. As pessoas olharam pro sol e chamaram de Deus para explicar fenômenos naturais que não entendiam.

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