Ivan Illich é um pensador controverso, que tem diversas críticas (exemplo1 e exemplo2) a instituições como a medicina (e também a educação, os transportes, por exemplo). Uma das observações a partir de seu pensamento, é de que o monopólio profissional impede que o conhecimento científico seja partilhado. Pensemos em uma questão como a da saúde. Se a saúde for questão apenas científica (monopolizada pela ciência da saúde), ou seja, de cientistas que escolhem o que pesquisar e publicar (e médicos, que posteriormente, diagnosticam e aplicam esse conhecimento), então os leigos (que são não-cientistas) não teriam o que tratar desta questão, pois o conhecimento científico tem que circular entre os envolvidos com a ciência. Existem diversas estratégias para fazer essa separação entre cientistas e não-cientistas: fazer da linguagem (“rigor”) científico algo inacessível e abstrato, utilizar métodos de pesquisa que distanciam observador/objeto de pesquisa, fazer o conhecimento científico circular em espaços restritos etc. O problema é que a questão da saúde definitivamente não é uma questão exclusiva de cientistas, pelo contrário: é de enorme interesse social.
A ciência é uma das formas de trabalhar o conhecimento, mas não é a única. E na sua existência concreta a ciência enquanto instituição não dá (e nunca irá dar) conta de todas as diversas demandas do dia a dia das pessoas. Ela tem suas políticas, enviesamentos, suas pautas, seus interesses e direcionamento de investimentos, que estão ligados às diversas características, inclusive de classe, de quem é cientistas, pesquisador ou tem acesso a este conhecimento.
Isso poderia ser diferente? Uma via é o próprio debate sobre qual o conhecimento produzido. Sabemos que o conhecimento científico não é cumulativo e esta crítica à própria ciência já é incorporada pela Ciência (ex.: ver Thomas Kuhn). Mas será que dá pra confiar apenas nos cientistas, pesquisadores e profissionais (como médicos, professores), quando a própria formação nas áreas tem barreiras profundas de classe, poder econômico e social (ex.: formação de médicos)? É preciso também problematizar quem está/pode/consegue/realiza este debate, e quem pode fazer/estudar ciência, publicar e pesquisasr. Afinal, para questionar o conhecimento científico, para discutir o que a ciência pensa e faz, é preciso ter acesso a este conhecimento. O conhecimento científico circula geralmente em espaços inacessíveis ao público em geral, como em artigos em meios pagos – e caros. Até mesmo médicos podem ficar sem este acesso.
Enquanto o conhecimento científico circular só entre cientistas, pesquisadores e instituições ligadas à ciência, como a universidade, é preciso saber como se faz essa ciência e quem a controla (raramente este questionamento aparece nas principais mídias, pois quando vão falar de um assunto, prevalece a fala do ‘especialista’). Porém, a própria Ciência poderia ter mais participação social e controle democrático (no que se investe, o que se prioriza, o que se estuda, quem estuda, para quem se pesquisa), mas infelizmente não é o que acontecem geral. Muita atenção: este comentário não é anti/contra a Ciência: o que argumento é que ela não é neutra, ou seja, é preciso pensar historicamente, situadamente, para quem o conhecimento e práticas científicas geralmente são produzidos.
Há a situação de dependência, para pesquisas sérias, de instituições que paguem a compra de periódicos (produzido pelos proprios cientistas, no Brasil geralmente financiados pelo proprio governo que tem que pagar por eles). Em contraponto a isso, existem iniciativas como o Open Science (Ciência aberta):
Na questão da medicina, existe um trecho deste texto do Ivan Illich que diz “destruição do potencial cultural das pessoas e das comunidades para lidar de forma autônoma com a enfermidade, a dor e a morte”. O quanto do conhecimento popular, útil e necessário, se perde, invisibiliza ou é aniqulidado quando somente o conhecimento tecno-científico (dos cientistas, pesquisadores e profissionais) é considerado válido?
São inúmeros os casos do conhecimento científico entrar em embate com o popular. E desestruturar comunidades (ver livro Golem a Solta). As questões populares terão análise científica? (e o contrário?) Se sim, de que áreas? (importante: há interdisciplinariedade? medicina será analisa apenas por este campo do conhecimento, ou por computação, ciência sociais, psicologia e design? há investimento, estimulo nessas áreas tbm?).
O que acontece quando população em geral não tem acesso ao conhecimento científico, apenas tendo como interface com a Ciência a posição de receptor das práticas profissionais derivadas desse conhecimento? Ficam dependentes de um grupo que não vai dar conta de atende-los e terão que se valer de métodos mais distantes daqueles considerados pelo discurso cientifico, e ainda serem criticados pelos cientistias/pesquisadores/profissionais por isso?
Este texto é uma reformulação inicial de um rascunho que escrevi certa vez (publicado apenas como comentário de Facebook) sobre o Ato Médico.
E o design livre, onde que entra? Seria um desses conhecimentos populares ou seria um conhecimento científico que teria vazado para a população em geral? Uma vez o Hugo Cristo disse que quando o design livre enfatizava publicar o processo para permitir que outras pessoas possam repetí-los ele se aproxima da ciência. Você concorda? E quanto ao critério de falsibilidade, se aplica?
Opa Fred, lembro também que o Luciano Lobato colocou essa questão no Design Livre e Ciência e que eu e você já debatemos sobre o grau racionalização do processo em projetos online (o quanto dá pra ‘medir’ ou mesmo ver o processo do desenvolvimento do projeto online, já que muita coisa vira material digital — uma fala desaparece no ar, mas um post está com o texto escrito…).
Do Design Livre, vejo na fronteira: conhecimentos populares podendo projetar como Design (se apropriando ou não do conhecimento científico) e aqueles com conhecimento científico sobre projeto podendo dialogar com não-cientistas/pesquisadores, etc. Um contato que com certeza não é só de harmonia, mas de conflitos. Eu, na posição de pesquisador, vejo isso quando escrevemos artigos sobre Design Livre e Corais: por fazer parte e tentar construir um Design Livre, acabamos tendo uma preocupação em evidenciar a participação de não-especialistas como contribuições fundamentais, mas sempre me coloco na dúvida de como fazer (“estou realmente dando voz a outro?”). O Design Livre surge também como um lugar onde é possível se fazer desenvolvimento de projetos e teorização de não-pesquisadores, é só ver os livros Coralizando e do próprio Design Livre. Lembro no debate por hangout que fiz com o Hugo Cristo e colegas, de como é complicado definir Design Livre teoricamente, até por isso, ver o D.Livre como movimento, e como atuação política nos sentidos do Design, vejo que tem mais vantagens do que definir em termos epistemológicos, ontológicos, etc.
E como você entende?
Eu acho que o design livre enquanto movimento tem alguns pontos em comuns com a ciência, principalmente no tocante de produzir conhecimento coletivamente. Porém, a epistemologia é completamente diferente. No design livre, o que é válido como conhecimento tem a ver com os desafios morais, sociais, econômicos e técnicos de um projeto numa situação específica. Poder ser algo muito baseado no feeling mesmo.
Disso deriva que a maneira como o design livre generaliza conhecimento de uma situação para outra é completamente subjetiva, ao contrário da ciência que requer a descrição objetiva do conhecimento. Por isso a importância das ferramentas de comunicação informal, do contato humano, da interação, para que esse conhecimento seja expandido (ao invés de transferido) de uma situação a outra.