Design Livre Primitivo

No passado, todos os criadores foram considerados artesãos. Não foi até faz 500 anos que os primeiros artistas surgirem da face das suas criações para se ganhar um lugar privilegiado dentro de nossas sociedades. Naquele ambiente primitivo, muitos elementos relacionados à criatividade ficaram juntos de uma maneira natural, ou seja, sem nenhum método ou restrição estabelecida, criando assim uma configuração de design sem restrições que deu lugar ao desenvolvimento cultural na escala local: um design que é naturalmente aberto. Tienda de souvenirs Um bom exemplo que chama a minha atenção é do Nahuizalco, uma cidade ao Oeste de San Salvador, em El Salvador. A principal fonte de receita é o design e fabricação de objetos de madeira: artesanatos ornamentais, utensílios e mobiliário. Os artesãos neste lugar tem aprendido tudo através de distintas fontes, sendo as mais importantes a inovação local, a infuência entre si dentro do sistema, e as influências externas. Hoje em dia as coisas não funcionam na mesma maneira, pelo ‘desenvolvimento’ de conceitos tais como a visão na propriedade privada da criatividade, assim como a criação de restrições sistêmicas à influência mútua entre os criativos. Algumas das condições que limitam esta configuração multidimensional da inovação são:   1. A negação da coletividade da inovação Como eu disse ao principio, a expressão criativa tem trocado do propósito de ser um elemento mais da sociedade, para ficar num staus superior. A visão romântica de um gênio louco, trancado no seu quarto até achar a epifania foi parte fundamental de esta visão, e não foi sem os resultados de pesquisas recentes da antropologia como contexto da inovação que tem permitido negar (pelo menos academicamente) esta ideia. Por exemplo, de acordo com R. Keith Sawyer (Explaining Creativity, 2006), é importante analisar todas as influências externas ao indivíduo, o que quer dizer que o ato de criação é mais social do que todos nós pensávamos. “Para explicar a criatividade no somente devemos incluir estes enfoques contextualizados; em muitos casos devemos começar com eles”.

2. O fechamento parcial ou total das vias de transferência do conhecimento e aprendizagem Um dos principais problemas aparentes dentro de um sistema aberto é o plágio (muitas vezes atrevido demais) das obras. Por exemplo, para sociedades antigas, um dos métodos de pesquisa de informação cultural é a comparação geográfica entre as expressões artísticas, para desenhar uma linha de tempo entre obras similares entre artistas. A dizer a verdade, o plagio é um dos principais meios de desenvolvimentoartístico entre artesãos, ao ponto de que em muitos casos existe muito pouca variação entre as expressões artísticas entre diferentes autores. A solução para isto, para muitas pessoas, e o fechamento dos processos e ainda dos produtos para outros produtores, o isolamento dos estilos particulares e a criação de vantagens competitivas através dos segredos comerciais. Ao mesmo tempo isso desacelera a criação coletiva e aumenta os custos da produção, sem mencionar a fragmentação da identidade coletiva social.

3. A apropiação das expressões artísticas através da propriedade intelectual Entretanto que existem muitas abordagens que justificam a propriedade intelectual, o mais questionável tem que ver com a remuneração para aquele criador que tem investido esforço para a criação das suas obras. Porém, desde um ponto de vista social, uma grande parte deste conhecimento e esforço esta baseado na influência feita pelo entorno, de modo que a valoração do esforço, e portanto, da validade da propriedade como é avaliado hoje em dia. A inovação foi possível antes sem a necessidade de restrições ao uso das obras, ou também em muitos casos da copia (interna ou desde sistemas externos) foi importante para a inovação, e continua assim até hoje. A industria da moda é um exemplo de como a criação pode permanecer a mesma num oficio sem precisar de apelar à propriedade intelectual, permitindo assim o remix de influências de todos os tipos. Entrada de la tienda Como conclusão, o design aberto oferece um caminho já anteriormente recorrida por nossas sociedades. Procura a criação e disseminação de influências e a inclusão do criador como protagonista e membro da sociedade, sempre quando as maiorias podem ser também protagonistas de essas mesmas historias. Sharing is caring.

11 thoughts on “Design Livre Primitivo”

  1. Emilio, muito bacana contar com sua participação desde El Salvador! A América Latina possui uma riqueza fantástica de design vernacular e acredito que esse pode ser nosso ponto de partida no Design Livre, o nosso primitivo, não no sentido atrasado, mas no sentido de origem. Ou seja, começar com a ideia de que o Design Livre já está no mundo há milhares de anos.

    A industrialização criou esse termo design para distinguir do artesanato. A prática produtiva do design é de fato diferente do artesanato: o conhecimento é fechado, a produção é feita em série e não há nenhuma ênfase na habilidade do sujeito que constrói o objeto. O design é fruto da divisão do trabalho que a indústria promoveu.

    Porém, hoje vivemos numa sociedade pós-industrial. As impressoras 3D trazem a indústria pra dentro de casa. Qualquer pessoa pode não só ser considerado um designer, mas de fato exercer a atividade tal qual um profissional. O que separa o profissional e o amador é o conhecimento e a experiência, não mais a divisão do trabalho.

    A questão é o que o movimento do Design Livre pode agregar para essa transformação? A importância dos códigos-fontes fica evidente com a disponibilidade de ferramentas como impressoras 3D, porém, design não é só know-how de ferramenta e de processos produtivos. Uns dizem que é o Design Thinking, outros dizem que é Arte, outros dizem que é a criatividade, estratégia, seja o que for, o fato é que os amadores querem tudo isso.

    Eu acredito que o Design Livre ao invés de levar impressoras 3D para os pobres artesãos de El Salvador (ou de qualquer outro lugar da America Latina), pode começar por celebrar sua criatividade, aprendendo e trocando experiências. Esse hibridismo entre design vernacular e design moderno pode trazer inovações interessantes, desde que a gente vá além do nível estético.

    1. Ou seja, começar com a ideia de que o Design Livre já está no mundo há milhares de anos.

      Essa parte é um movimento e tanto. Como sustentar essa ideia, considerando que o Design Livre opera pelo compartilhamento/abertura do “código-fonte” das coisas? Fico bem curioso para saber como você pensa o Design Livre acontecendo há 50 mil anos quando estaríamos, em tese, com o homo sapiens moderno em plena atividade. O que seria o Corais do Paleolítico Superior?

      PS: As ideias de origem, vernacular, primitivo são extremamente contraproducentes quando se fala em abertura e processos distribuídos.

      1. Hugo, o Design Livre não é um objeto de estudo com bordas definidas. O Design Livre é mais um movimento com uma série de propostas para o mundo, dentre elas a articulação entre produção vernacular e distribuída, que o Emilio levantou no seu texto. A vantagem de não ter uma definição precisa é que podemos ter um debate amplo e inclusivo, ou seja, qualquer um pode colocar a sua questão.

        Com certeza é uma articulação difícil essa com o vernacular. O Design tem se ocupado atê então de substituir gradualmente o vernacular pela lingua franca (as formas de produção padronizadas). Porém, após a implementação de todo padrão, a partir de um certo momento, começam a surgir formas híbridas que muito se assemelham ao vernacular de outrora, apesar de funcionarem dentro dos limites do padrão.

        É o caso de rituais folclóricos e brincadeiras de rua tornados inviáveis pela urbanização vertical, esvaziamento da rua devido à violência e dispersão geográfica, que acabaram ganhando uma nova forma nas redes sociais, em especial o Orkut, no Brasil.

        Eu vejo o Design Livre como uma ênfase nesse retorno ao vernacular. Existem grandes oportunidade para trabalhar o vernacular com sistemas distribuídos, principalmente porque eles não estão dominados por interesses padronizantes. Ou seja, os sistemas distribuídos são os únicos atualmente capazes de conectar sem extinguir a diversidade.

        Esse é um ponto que ainda desejo explorar melhor no futuro. Tenho um projeto de pesquisa que está infelizmente parado por falta de colaboradores sobre o uso de Scratch pelas crianças. Será que podemos encontrar formas vernaculares de cultura infantil nesses jogos, tal qual podemos encontrar nas brincadeiras de rua? http://fredvanamstel.com/research/reclaiming-the-cultural-heritage-of-childrens-games

        Mas se for pra arriscar o que seria o Corais do Paleolítico, eu diria que seria um Sambaqui, uma daquelas montanhas de conchas, artefatos e fósseis que os brasileiros acumulavam nas margens da costa há milhares de anos.

  2. Fiquei confuso. Qual design tem se ocupado da tarefa de substituir o vernacular pela língua franca? Primeiro você fala que isso ocorre no design, o que eu discordo que seja o modus operandi, depois oferece um exemplo de rituais folclóricos e brincadeiras de criança.

    Acho que você precisa deixar mais claro o que entende por vernacular e em quais situações do design a tal substituição ocorreria. Essa dinâmica me parece natural e não um processo formal perseguido pelo design. Parece razoável inclusive sugerir que o uso sempre é “vernacular” e nunca padronizado, já que pensar, usar e fazer estão articulados num mesmo domínio linguístico situado no tempo e espaço.

    Sua busca pela brincadeira vernacular nos usos do Scratch, por exemplo, aponta para uma concepção do vernáculo como origem, o que não faz sentido. O dialeto é o que escapa à língua, mas opera dentro dela para se constituir. Não há brincadeira de rua alguma no Scratch porque não há rua na vida das crianças que crescem nos apartamentos, pelo menos não no sentido que você argumenta. Imprimir uma subjetividade da rua às brincadeiras enclausuradas dos condomínios é explicar o comportamento pela falta. Haja psicanálise.

    Por fim, não entendi a relação do Corais com o Sambaqui. O Corais é um repositório arqueológico dos objetos ou uma “plataforma para proliferação de projetos colaborativos”? Estou especialmente interessado em como você pensa a colaboração na co-criação (argh) dos objetos pré-históricos e o compartilhamento dos processos de projeto há milhares de anos.

    Certamente se aprende muito olhando o lixo de alguém, mas…

    1. Se considermos o projeto como articulação de várias linguagens, podemos identificar certas características formais no uso dessa linguagem que indicam o tipo de projeto que lhe deu origem. Um experimento interessante é os bis organizados em estrela do Gonzatto. Ninguém ousou pegar os bis, o que levou à conclusão de que não basta ser projetado, tem que parecer projetado. http://www.gonzatto.com/linguagem-design-projetado/

      Há algum tempo eu venho trabalhando com essa noção de brincadeiras como Design de Interação Vernacular. As brincadeiras de criança são estruturas desenvolvidas ao longo de gerações que fazem parte da inserção da criança na sociedade. As brincadeiras estabelecem uma forma de interação, a regra, que é razoavelmente flexível, pois pode ser renegociada.

      O Design de Interação faz a mesma coisa, mas de forma mais sofisticada: a forma da interação é codificada numa tecnologia de interação. O problema é que muitas vezes os designers não podem estimular a emergência de formas vernaculares pois a organização por trás da tecnologia deseja efetivamente controlar a linguagem da interação, enfim, estabelecer uma lingua franca que depende dessa tecnologia. A forma da interação não é flexível. É o mesmo problema do software proprietário, só que visto pela perspectiva da interação.

      Esse post explica como eu usava esse conceito nas minhas aulas sobre Design de Interação.
      http://www.usabilidoido.com.br/ensinando_design_de_interacao_com_brincadeiras.html

      Eu não diria que o uso é sempre vernacular e que o design é sempre lingua franca. Articulação significa hibridismos, porém, cheio de conflitos.

      A analogia com o Sambaqui é limitada, mas o que vejo em comum é o acúmulo organizado de produtos culturais, o que permite que as práticas de hoje aprendam com as práticas do passado. Uma das características principais do Corais é que os projetos são públicos e que a colaboração que por ali acontece acaba virando documentação disponível para outros projetos. Ou seja, mesmo que o projeto morra na praia e termine no topo do sambaqui, ainda assim ele serve à comunidade.

      1. Seu exemplo da brincadeira como estrutura é mais um indício do Chomsky como profeta do design livre heheh :)… Se a brincadeira faz parte da cultura e a criança cresce inserida naquele contexto, é óbvio que ela aprenderá o jogo mediado por suas regras. Isso não quer dizer que o mesmo jogo não seja atualizado pela própria ação da criança. Acho até difícil dizer qual parte de uma criança brincando é invenção dela e qual parte ela aprendeu, sob o risco de escolher qualquer um dos lados igualmente perigosos do inatismo versus determinismo estrutural…

        …o que nos leva ao design de interação codificado pela tecnologia. Não poderia discordar mais. Como assim a interação não é flexível? Os usuários dobram, torcem, recodificam e resignificam as interações, as tecnologias e os códigos o tempo todo. Tolo é o designer que acredita nesse controle, sendo a plataforma proprietária ou não. Do jeito que você sugere, parece que a interação precede o uso, o que é um absurdo.

        Eu não disse que o design é sempre língua franca, mas que parece razoável dizer que o uso é sempre vernacular pelo simples fato de que não está dado antes da ação e é necessariamente articulado pela práxis. É claro que essa visão não se encaixa no paradigma modernista do design, mas quem se importa? Do mesmo jeito que os dialetos se atualizam nas condutas comunicativas, o uso se atualiza no histórico dos comportamentos de um grupo. É o jogo de forças da conversa furada no cotidiano que empurra o dialeto para longe da língua franca e não a estrutura ou organização prévia desta.

        Já a proposta de não bastar ser projetado e que é preciso parecer projetado é gestaltista demais pro meu paladar. Pra mim a organização nunca é, ela está.

        Continuo achando improvável um design livre de milhares de anos, embora seja um evangelizador assumido do design de milhares de anos.

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  4. Gostei muito do seu texto, Emilio. A questão do plágio é uma das que acho mais interessantes. Publiquei um texto com alguns trechos sobre plágio que encontrei no livro Distúrbio Eletrônico, do Critical Art Ensemble: https://designlivre.org/plagio/ acho que contribuem com o argumento.

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