Aproveitando os debates conceituais que foram recentemente publicados no blog, revi um texto que escrevi em 2011 sobre o design, sua relação com a cultura material e imaterial. Acho que pode ser interessante para o debate sobre o design livre!
“Certa vez tentei explicar meu trabalho para um jornalista, que resumiu minha longa explicação em uma exclamação: você é um antropólogo tecnológico!” (Vicent Kim em “The human factor: revolutionizing the way people live with technology” p.15, 2006).
Introdução
A palavra design está presente no cotidiano contemporâneo de forma recorrente. Há cursos de design gráfico, design visual, design de som, de hipermídia, de jogos, de embalagem, de produto, de moda, de jóias, de ambientes, de interiores, de serviços. Design de interfaces e design de interação, entre outros.
Diante de tanta diversidade, para dar início a esta reflexão analisaremos a origem da palavra. Para tanto recorremos ao ensaio ‘Sobre a palavra Design’ do filósofo Vilém Flusser. Design vem do latim, do verbo designare, ou seja, “etimologicamente a palavra design significa algo como de-signar” (Flusser, p. 181, 2007). Neste sentido, ela carrega em si muito mais o aspecto de projetista do designer do que seu lado mais comumente conhecido que é o ‘daquele que desenha’. Sendo assim pode-se compreender design como a intenção de criar ou modificar algo.
Durante a análise dos significados tanto do substantivo quanto do verbo design Flusser (2007) afirma que “a palavra design ocorre em um contexto de astúcias e fraudes. O designer é, portanto, um conspirador malicioso que se dedica a engendrar armadilhas” (Flusser, p. 182, 2007). Tais afirmações encontram-se distantes do senso comum do que é o design nos dias atuais. Isso ocorre devido ao fato de haver duas escolas de design: o design do Natural e o do Artificial, segundo Bezerra (2008). Citando Hebert Simon, autor do livro The Science of the Artificial, “ele define o Artificial como o que foi concebido pelo ser humano, o resultado de uma ação humana; e o Natural como um produto da natureza” (Bezerra, p.33, 2008). Esta capacidade de criação e construção de simbologismo do ser humano está associada ao conceito de cultura das ciências sociais. Pode-se compreender a cultura como “instância humanizadora, que dá estabilidade às relações comportamentais e funciona como mecanismo adaptativo da espécie” (Velho e Castro, 1978, p. 5). Isto quer dizer que ao estarem inseridas em determinada sociedade as pessoas produzem códigos, verdadeiros aparelhos simbólicos, que interpretam a realidade e dão sentido ao mundo no qual se encontram.
Design e Cultura
É neste contexto que Flusser afirma que “este é o design que está na base de toda cultura: enganar a natureza por meio da técnica, substituir o natural pelo artificial e construir máquinas de onde surja um deus que somos nós mesmos” (Flusser, p. 184, 2007). Se nos atermos a esta afirmação podemos também concluir que “em essência, somos todos designers” (Bezerra, p.28, 2008), já que todos seres humanos são criadores de conceitos e objetos.
Estas reflexões acerca da palavra design se mostram necessárias para ampliarem o conceito, proporcionando a possibilidade de uma compreensão da complexidade envolvida no processo do design e em especial, do design livre. De forma resumida pode-se afirmar que “design significa aproximadamente aquele lugar em que arte e técnica (…) caminhando juntas, com pesos equivalentes, tornando possível uma nova forma de cultura” (Flusser, p. 184, 2007). Por outro lado é preciso ressaltar que “não é fácil explicar ou definir design (…) podemos entendê-lo através de seus aspectos práticos, operacionais ou profissionais. (…) Podemos também ver o design como uma atividade de tradução (…) ou como uma atividade de ordenação e configuração” (Bezerra, p.17, 2008). Independente da abordagem ou ponto de vista, o processo de design é uma atividade humana que evoluiu ao longo dos séculos. Se os primeiros primatas construíam arcos e flechas atualmente construímos coisas intangíveis, tais como os softwares. É dizer o trabalho do design transcende a projeção de artefatos materiais, ainda que ele seja um dos grandes responsáveis pela criação de objetos materiais.
Segundo Flusser (2007) “um objeto de uso é um objeto que se necessita e que se utiliza para afastar outros objetos no caminho (…) um obstáculo para remover obstáculos?” (p. 194) questiona o autor para explicar que “esta contradição consiste na chamada dialética interna da cultura (…) em outras palavras quanto mais prossigo, mais a cultura se torna objetiva, objetal e problemática” (p.197). De fato, a evolução do arco e flecha para interfaces multitoque e softwares auto programáveis contribuiu consideravelmente para o desenvolvimento do design incluindo, por exemplo questões de usabilidade. Portanto, neste sentido talvez caiba a comparação entre o antropólogo e o design de interação, enquanto o primeiro estuda e analisa o homem e a humanidade como um todo, o segundo se dedica a aprender e estudar como os seres humanos interagem com este novo universo do intangível trazido pelas máquinas.
Acima de tudo é importante pontuar que “a noção de design não pode ser resumida em uma palavra e (…) também não pode ser resumida em uma disciplina. Somos estudantes de problemas, de problemas que não definem fronteiras” (Charles Eames, apud Bezerra, p.24, 2008). Destacamos o aspecto de solucionadores de problemas pois este é exatamente o grande desafio de inovação contemporâneo, ou seja, solucionar questões e desafios compartilhados, por meio de metodologias colaborativas, como é o caso do design livre.
Referências
BEZERRA, Charles. O Design Humilde. São Paulo, Edições Rosari, 2008.
FLUSSER, Vilém. O Mundo Codificado: Por uma Filosofia do Design e da Comunicação. São Paulo, Cosac Naify, 2007.
KIM, Vicent. The Human Factor. Nova Iorque, Routledge, 2006.
Olá Drica! Bacana o texto. São caminhos interessantes para pensar que, se design é produção de cultura material, então qualquer pessoa pode ser considerada um designer na medida em que faz parte da produção dessa cultura material.
O ato de consumo, embora pareca passivo na esfera do sujeito, se torna extremamente ativo na esfera da sociedade, agendando todo um sistema de produção econômica. Os arranjos produtivos seguem os pequenos atos de consumo repetidos por milhares de pessoas. É uma escolha consciente do coletivo, da sociedade, apesar de que essa escolha seja mediada por uma série de aparatos de sedução.
O ato de sedução, conscientemente realizado por designers profissionais, e o ato de consumo, conscientemente realizado por consumidores individuais, são ambos responsáveis pela manutenção da cultura material em que vivemos. Não faz sentido culpar o designer profissional pela escolha de materiais poluentes enquanto o consumidor faz suas opções baseado apenas no preço.
O designer simplesmente segue o padrão estabelecido no mercado, fazendo uma ou outra pequena modificação. Mas se o designer não projeta o padrão, então quem projeta?
É aí que entra o Design Livre. Existe muitos projetos acontecendo sem um designer profissional por trás. A solução não é aumentar a quantidade de designers profissionais, pois estes não vão dar conta da demanda e complexidade.
Pergunta para um urbanista como é que se projeta uma cidade. Não tem como. O Jaime Lerner, urbanista badalado do momento, diz que o que ele faz é “acumptura urbana”, pequenas intervenções que tem um efeito sistêmico. Uma coisa que ele não diz é que os efeitos não podem ser controlados ou previstos com certeza. Por que? Por que os atos de consumo repetidos milhares de vezes é que vão de fato multiplicar (e modificar) efeitos.
Estou anexando minha imagem favorita do livro do Design Livre: a idéia de projetos de projetos. Com o movimento em torno do Design Livre eu particularmente espero que esse tipo de projeto esteja na pauta do Design e que não seja exclusiva de um grupo de especialistas. Queremos evitar que essas grandes questões da sociedade contemporânea fique nas mãos de uma “elite do metadesign”, que o Caio Vassão descreve na sua tese. http://caiovassao.com.br/
Ei Fred!
Obrigada pelo comentário. Não conhecia o trabalho do Caio Vassão, muito interessante, vou pesquisar!
Concordo com o Hugo que o designer tem sim MUITA responsabilidade sobre o que está projetando!!!
Inclusive o Dijon de Moraes, que também trabalha com Metaprojeto, desenvbolve toda uma área de design e sustentabilidade aqui na UEMG.
Está sendo muito bom revisar o material do meu TCC, que foi justamente sobre o Design Livre e a sustentabilidade! A hipótese é justamente que é preciso aplicar o design livre para modelos mais sustentáveis! Aos poucos vou publicandio mais material!
Fred,
É ÓBVIO que faz sentido responsabilizar o designer. E a ética profissional? E o lado espiritual do Design, como sugeriu Papanek? O designer profissional, quando escolhe um material poluente, com desmonte ou descarte inapropriados desinforma.
Não acho que seja uma coisa nem outra. Os padrões são uma linguagem e resultam das ações de pessoas de carne e osso, ainda quem articuladas por forças distintas e difusas. Todos projetam o tempo todo e o padrão não é algo simplesmente a ser seguido (nem escolha nem default). Particularmente não uso “padrão” no sentido de standard, mas no de sistema: uma coisa realiza o sistema na sua materialização naquele espaço-tempo, de forma que uma nova realização da mesma coisa em outro lugar ou daqui a seis meses geraria outra coisa e ainda assim estaríamos falando do padrão de atividade do mesmo sistema.
Drica,
Uma curiosidade: o mesmo (genial) Herbert Simon que descreve o “artificial” como produto da ação humana e o “natural” como produto da natureza falhou miseravelmente ao realizar na prática essa distinção. Uma visão menos antropomórfica e menos computacional da ação sugeriria que não há nada mais natural que aquilo que o homem faz em seu meio.
Ei Hugo,
interessante sua pontuação. De que forma o Hebert Simon falhou ao realizar na prática essa distinção entre o natural e o artificial?
Para complementar esse artigo li esta semana outros dois que me pareceram relevantes para essa problematização do conceito do design e a forma como ele se relaciona com a cultura contemporânea:
1- O designo do design da Catarina Moura
2 – O Artificial Ou a cultura do design total da Maria Tereza Cruz
Ambas de Portugal! Neste último a autora afirma que
Tem a ver com a “falha” do Simon?
Oi Drica,
Discordo da afirmação de que a cultura seria uma característica exclusivamente humana. Práticas culturais podem ser vistas em diversas espécies infra-humanas (putza termo especista, eu sei). O exemplo clássico seria da prática da limpeza das batatas doces na água pelos macacos japoneses Fuscata, mas esse seria um exemplo ruim, já que estudos posteriores mostraram que bastava a proximidade da água, sem que fosse necessário a observação ou ensino de outro macaco lavando a batata para que esse comportamento surgisse depois de um tempo. Embora realmente pareça haver um aumento do controle “voluntário” do comportamento (controle pelas consequências; capacidade de aprender – e com isso, tornando o comportamento suscetível ao controle do ambiente social – inclusive o verbal – e ser propagado) e uma diminuição dos comportamentos “instintivos” (eliciados pelo ambiente; comportamentos respondentes ou condutas típicas da espécie) juntamente com a complexidade biológica da espécie, não dá pra falar que a transmissão ou propagação (a característica que distingue o conceito de “cultural” do conceito de “social”) de comportamentos entre membros da mesma espécie seja uma característica exclusivamente humana, como diversos estudos mostram: http://accultura.files.wordpress.com/2007/09/chavin_e_berman_intergeneraional_transmission_of_behavior.pdf
Acho que seria forçar o limite da linguagem falarmos que infra-humanos podem ser designers, já que o significado convencional do termo design está associado ao contexto da revolução industrial, seres humanos e tal (seria como falar de infra-humanos engenheiros ou médicos), mas se formos adotar a definição mais ampla que você colocou no texto, de design como “solução de problemas”, as espécies infra-humanas certamente seriam inclusas nessa categoria, por solucionarem problemas.
Outro ponto que tenho que discordar é da linguagem como sendo definidora do cultural. Embora a linguagem seja um dos componentes que favorecem os fenômenos de seleção, transmissão e manutenção de práticas culturais (e certamente é uma das responsáveis pela complexidade cultural em que vivemos), ela não é condição necessária ou suficiente para os últimos, como mostram alguns experimentos: http://www.walden4.com.br/pww4/index.php?title=Cap%C3%ADtulo_14._Estudos_experimentais_de_pr%C3%A1ticas_culturais#A_investiga.C3.A7.C3.A3o_de_rela.C3.A7.C3.B5es_verbais_e_eventos_antecedentes_na_determina.C3.A7.C3.A3o_da_sele.C3.A7.C3.A3o_de_metaconting.C3.AAncias_em_laborat.C3.B3rio
De resto, concordo que o design tem uma intersecção com a antropologia cultural, uma vez que (se delimitarmos a definição) é prática cultural, gera artefatos culturais e pode (se bem sucedido) influenciar outras práticas culturais.
Ei luciano, interessantes suas colocações. De fato, me fizeram lembrar da teoria dos fractais do Mandelbrot. Sob esta ótica, realmente não se pode fazer nem em cultura, nem em linguagem como sendo exclusivamente humanas. acho que um contribuição para essa reflexão também foi a primeira parte do documentário Hello Wordl, processing: https://vimeo.com/60735314 vou inclusive postá-lo para compartilhar! obrigada pelas observações!