O que as manifestações podem aprender do código livre

Poderia eu tentar contextualizar as manifestações, mas acredito que muito foi dito no Impedimento, no Incandescenciapor este texto.

Fato que elas (as manifestações) tomaram dimensões não esperadas, com muitas pessoas dispostas a ajudar e outras querendo sabotar. Assustando governos, jornais e até os que encabeçaram as primeiras passeatas.

Cada dia que passa mais dúvidas vão surgindo na cabeça de todos: Como gerenciar tantas pessoas? O que estamos protestando? Quem são as pessoas que saqueiam e vandalizam? Porque a PM mudou de comportamento? Como aproveitar toda essa boa vontade? Pode tudo isto virar em nada? Ou acabar indo pro lado errado?

Questões que só os historiadores poderão responder, mas é fato que a grande mídia e os ‘políticos’ espertos inverteram seus discursos a fim de tentar tirar proveito de alguma forma deste movimento que não possui líderes, não possui ordem específica e se comporta imprevisivelmente.

Por isso acredito que podemos aprender muito com a comunidade do Opensource, também chamda de Código Livre, onde um número ilimitados de pessoas trabalham em conjunto em um código específico e de maneira TRANSPARENTE. Trabalho que há décadas traz benefícios para sociedade:

As pessoas realizaram algo em cooperação, unicamente por ser uma boa ideia, foi fantástico– Jaron Lanier sobre a Word Wide Web

I – Descentralização: Qualquer pessoa interessada pode ajudar, opinar e fazer. Basta ter conhecimento necessário.

Todo e qualquer cidadão pode ajudar com cartazes, mesas de discussão, divulgação da informação ou indo além dentro da sua área de atuação. Para isto basta ter a chave, no código livre é linguagem de programação, no movimento é a INFORMAÇÃO.
Leia, informe-se e duvide, este foi o começo da revolução, agoraacostume a fazer diariamente.

II – Transparência: Suporte, fórum de discussão e conhecimento gratuito.

A chave para a comunidade do código livre é o conhecimento da linguagem, mas ela é distribuída livremente pelos próprios participantes do projeto em seus blogs ou em plataformas de discussão. Tudo documentado é acessível a quem queira começar.
O mesmo deve acontecer com o movimento, toda e qualquer informação relevante, documento, foto, video deve estar disponível para todos em uma wiki, fórum, dropbox, blogs ou em algum canal*.
E o processo de aprendizagem e a criação de material didático deve ser constante. Não menosprezando ninguém.

III – Pluralidade: Diferentes ideologias convivem pelo mesmo propósito.

Dentro do código livre são diferentes ideologias trabalhando em conjunto. Pessoas de diferentes nações com abordagem diferentes na busca de um ideal comum, o código. Cada manifestante tem opiniões e abordagem diferentes e é preciso aceitar que estamos numa luta conjunta e propostas sólidas como: fiscalizar estes documentos, propor reduções orçamentais, criar canais de debate irão a segurar estas ideologias não entrarem em conflito.

VI – Debate: Com propostas dentro do contexto.

Outro ponto muito importante do código livre é que a comunidade é ativa nos debates com propostas e não apenas com críticas descontrutivas. Dentro do movimento devemos dialogar online e offline encontrando congruência com as causas do momento propondo soluções sem devaneios e conceitos abstrados como corrupção, educação.
Pensar e estudar em propostas possíveis nem que precise criar grupos e ir atrás de representação parlamentar.

V – First Things First: Atuar dentro das prioridades

Dentro de um projeto onde se produz código sempre surgem idéias como criar uma inteligência artificial ou resolver problemas com soluções mirabolantes. Mas estas se escoem rapidamente e o foco fica no que deve ser feito para melhorar a próxima versão a ser lançada. É pensado aos poucos e com paciência (v0.1, v0.2, v0.3…). O mesmo vale para as manifestações, as pautas precisam ser levadas uma de cada vez de forma organizada e o mais sólidas possíveis, para as ruas, para os governantes e para as urnas. Talvez devêssemos pensar em versão Outubro 2013?

Terminando

Outro ponto bem importante da comunidade de código livre é que as pessoas discutem, comentam, absorvem ideias e linkam textos. Tudo que escrevi aqui pode ser ingênuo mas é um start para uma discussão de como o movimento irá se organizar sem perder sua horizontalidade, seu intuito espontâneo e conviver com sua pluralidade. Continuando forte e sem risco.

*Atualmente não temos uma plataforma coerente para discussão. O facebook apresenta sérios problemas em relação a bolha de filtros, layout que não incentiva a discussão e o arquivamento das mensagens.
UPDATE: Já vem surgindo boas iniciativas para este problema. Criaram umTrello para que todos opinem, votem e recomedem pautas.

O design como antropologia contemporânea

Aproveitando os debates conceituais que foram recentemente publicados no blog, revi um texto que escrevi em 2011 sobre o design, sua relação com a cultura material e imaterial. Acho que pode ser interessante para o debate sobre o design livre!

“Certa vez tentei explicar meu trabalho para um jornalista, que resumiu minha longa explicação em uma exclamação: você é um antropólogo tecnológico!” (Vicent Kim em “The human factor: revolutionizing the way people live with technology” p.15, 2006).

Introdução

A palavra design está presente no cotidiano contemporâneo de forma recorrente. Há cursos de design gráfico, design visual, design de som, de hipermídia, de jogos, de embalagem, de produto, de moda, de jóias, de ambientes, de interiores, de serviços. Design de interfaces e design de interação, entre outros.

Diante de tanta diversidade, para dar início a esta reflexão analisaremos a origem da palavra. Para tanto recorremos ao ensaio ‘Sobre a palavra Design’ do filósofo Vilém Flusser. Design vem do latim, do verbo designare, ou seja, “etimologicamente a palavra design significa algo como de-signar” (Flusser, p. 181, 2007). Neste sentido, ela carrega em si muito mais o aspecto de projetista do designer do que seu lado mais comumente conhecido que é o ‘daquele que desenha’. Sendo assim pode-se compreender design como a intenção de criar ou modificar algo.

Durante a análise dos significados tanto do substantivo quanto do verbo design Flusser (2007) afirma que “a palavra design ocorre em um contexto de astúcias e fraudes. O designer é, portanto, um conspirador malicioso que se dedica a engendrar armadilhas” (Flusser, p. 182, 2007). Tais afirmações encontram-se distantes do senso comum do que é o design nos dias atuais. Isso ocorre devido ao fato de haver duas escolas de design: o design do Natural e o do Artificial, segundo Bezerra (2008). Citando Hebert Simon, autor do livro The Science of the Artificial, “ele define o Artificial como o que foi concebido pelo ser humano, o resultado de uma ação humana; e o Natural como um produto da natureza” (Bezerra, p.33, 2008). Esta capacidade de criação e construção de simbologismo do ser humano está associada ao conceito de cultura das ciências sociais. Pode-se compreender a cultura como “instância humanizadora, que dá estabilidade às relações comportamentais e funciona como mecanismo adaptativo da espécie” (Velho e Castro, 1978, p. 5). Isto quer dizer que ao estarem inseridas em determinada sociedade as pessoas produzem códigos, verdadeiros aparelhos simbólicos, que interpretam a realidade e dão sentido ao mundo no qual se encontram.

Design e Cultura

É neste contexto que Flusser afirma que “este é o design que está na base de toda cultura: enganar a natureza por meio da técnica, substituir o natural pelo artificial e construir máquinas de onde surja um deus que somos nós mesmos” (Flusser, p. 184, 2007). Se nos atermos a esta afirmação podemos também concluir que “em essência, somos todos designers” (Bezerra, p.28, 2008), já que todos seres humanos são criadores de conceitos e objetos.

Estas reflexões acerca da palavra design se mostram necessárias para ampliarem o conceito, proporcionando a possibilidade de uma compreensão da complexidade envolvida no processo do design e em especial, do design livre. De forma resumida pode-se afirmar que “design significa aproximadamente aquele lugar em que arte e técnica (…) caminhando juntas, com pesos equivalentes, tornando possível uma nova forma de cultura” (Flusser, p. 184, 2007). Por outro lado é preciso ressaltar que “não é fácil explicar ou definir design (…) podemos entendê-lo através de seus aspectos práticos, operacionais ou profissionais. (…) Podemos também ver o design como uma atividade de tradução (…) ou como uma atividade de ordenação e configuração” (Bezerra, p.17, 2008). Independente da abordagem ou ponto de vista, o processo de design é uma atividade humana que evoluiu ao longo dos séculos. Se os primeiros primatas construíam arcos e flechas atualmente construímos coisas intangíveis, tais como os softwares. É dizer o trabalho do design transcende a projeção de artefatos materiais, ainda que ele seja um dos grandes responsáveis pela criação de objetos materiais.

Segundo Flusser (2007) “um objeto de uso é um objeto que se necessita e que se utiliza para afastar outros objetos no caminho (…) um obstáculo para remover obstáculos?” (p. 194) questiona o autor para explicar que “esta contradição consiste na chamada dialética interna da cultura (…) em outras palavras quanto mais prossigo, mais a cultura se torna objetiva, objetal e problemática” (p.197). De fato, a evolução do arco e flecha para interfaces multitoque e softwares auto programáveis contribuiu consideravelmente para o desenvolvimento do design incluindo, por exemplo questões de usabilidade. Portanto, neste sentido talvez caiba a comparação entre o antropólogo e o design de interação, enquanto o primeiro estuda e analisa o homem e a humanidade como um todo, o segundo se dedica a aprender e estudar como os seres humanos interagem com este novo universo do intangível trazido pelas máquinas.

Acima de tudo é importante pontuar que “a noção de design não pode ser resumida em uma palavra e (…) também não pode ser resumida em uma disciplina. Somos estudantes de problemas, de problemas que não definem fronteiras” (Charles Eames, apud Bezerra, p.24, 2008). Destacamos o aspecto de solucionadores de problemas pois este é exatamente o grande desafio de inovação contemporâneo, ou seja, solucionar questões e desafios compartilhados, por meio de metodologias colaborativas, como é o caso do design livre.

Continue reading “O design como antropologia contemporânea”